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domingo, 21 de setembro de 2014

O CARRO PARA A CRISE QUE NÃO VEIO




Creio que o Ford Del Rey seja conhecido de todos. Ele foi lançado em junho de 1981, claramente baseado no Corcel, mas oferecendo itens de luxo até então inéditos no país, como acionamento elétrico de vidros e travas, relógio digital (no console de teto), um painel completo (tinha até manômetro de óleo) com uma bonita iluminação misturando luzes vermelhas e azuis, aliado a um acabamento primoroso, abundância de forrações e opção de quatro portas e de ar-condicionado.

Porém, trazia sob o capô o antigo motor Ford usado no Corcel, herdado da Willys, baseado no motor Renault Sierra, que foi ao longo dos anos aumentado de 1.289 para 1.555 cm³. Era um motor adequado a um carro médio da época, mas não a um carro de luxo como o Del Rey se propunha ser.

Por isto, o Del Rey sempre teve seu desempenho criticado em uma quase unanimidade. Na época de seu lançamento, seus concorrentes, tanto em preço quanto em requinte, eram Chevrolet Diplomata, Alfa Romeo 2300 e até o irmão maior Ford Landau, todos com motores que proporcionavam um desempenho muito melhor do que o que o velho motor do Corcel podia dar a ele.

O que levou a Ford a criar um carro de luxo com motor tão fraco assim? A resposta pode ser encontrada se voltarmos alguns anos no tempo, quando o Del Rey era apenas um projeto.

Em 1977, a Ford se convenceu que lançar o Maverick no Brasil não tinha sido uma idéia muito boa. Nos EUA ele era um carro compacto, uma alternativa barata ao Ford Mustang (e feito para concorrer com o Fusca!), mas no Brasil ele era para ser o primeiro carro da casa, principalmente por causa de seu preço. O problema é que lhe faltava espaço interno para isso. Antes de seu lançamento, clínicas já haviam demonstrado a preferência do consumidor brasileiro pelo Ford Taunus, mas problemas técnicos e políticos internos na Ford determinaram que o Maverick fosse lançado, mesmo tendo sido preterido pelo público nas pesquisas.


O Maverick não fez o sucesso que a Ford esperava no Brasil

Por causa disso, ela buscava um sucessor para o Maverick, para ocupar a espaço entre Corcel e Landau, coisa que o Maverick não vinha fazendo bem. Para se ter uma idéia, em 1977, para cada Maverick que a Ford vendeu, a GM vendeu cinco Opalas. Um substituto se fazia necessário. E a Ford o vinha providenciando.

A idéia não era desenvolver um carro totalmente novo, mas sim fazer uma profunda reestilização no Maverick, aproveitando apenas a sua plataforma, só que dando a ele uma forma bem mais retilínea, condizente com as tendências estilísticas do final dos anos 70. Exatamente o mesmo que já havia sido feito com o Corcel para a linha 1978, com a criação do Corcel II: uma casca totalmente nova sobre plataforma e mecânica antigas. Iriam fazer um Maverick II, no fim das contas.

Outro efeito disso seria que as linhas mais retas dariam ao novo Maverick II um substancial aumento de espaço interno, eliminando o problema de aperto que tanto incomodava seus donos e acabava dando vantagem competitiva ao Opala, seu concorrente direto. As linhas do Maverick II seriam inspiradas nas do Ford Granada, o sucessor do Ford Taunus, o carro que havia vencido a pesquisa anterior ao lançamento do Maverick. Desta forma, a Ford finalmente curvava-se à preferência do brasileiro por desenhos europeus.


Reparem bem: não é um Del Rey, é um Ford Granada

Ao mesmo tempo, a Ford planejava a ampliação da linha Corcel, devolvendo a versão 4-portas, presente desde 1968, mas que havia sido eliminada quando da reestilização que criou o Corcel II.

O mundo havia passado há poucos anos por um choque do petróleo, em 1973, quando o preço do “ouro negro” pulou de 3 para 12 dólares o barril (US$ 15 para US$ 62 a valores de hoje) em um espaço de poucos meses. Nesta época já buscavam-se carros mais econômicos para fazer frente à nova realidade dos preços da energia. Mas ainda assim a Ford mantinha em seus planos que o Maverick II usaria o mesmo motor 4-cilindros de 2,3 litros do Maverick anterior, mantendo a diferenciação para o 1,4-litro do Corcel (o 1,6- litro não apareceria antes de 1979).

As coisas caminhavam bem neste sentido até que os planos da Ford viraram de cabeça para baixo em 1979: Com o início da Revolução Iraniana, que levou o Aiatolá Khomeini ao poder e logo depois com a guerra Irã-Iraque, o mundo viria a sofrer o segundo choque do petróleo: de US$ 14 no início de 1979, o petróleo dispararia para US$ 40 o barril em menos de um ano. Em valores corrigidos para os dias atuais, o preço do barril de petróleo aumentara de US$ 44 para US$ 111.


Del Rey "Prata", a versão mais simples do carro

Analistas do mercado, em pânico, profetizavam que o petróleo poderia chegar a US$ 90 (algo como US$ 250 nos dias de hoje) no meio da década que se iniciava, caso houvesse um “terceiro choque do petróleo”. Diante do cenário de uma nova recessão mundial e com esta perspectiva de uma grave crise energética no horizonte, a Ford apostou que a tendência seria que os carros deveriam ser obrigatoriamente econômicos, mesmo os de luxo.

Sendo assim, resolveu cancelar o Maverick II e Corcel II 4-portas, mas aproveitando a econômica plataforma do segundo como base para seu novo carro médio. As linhas do novo carro continuariam inspiradas nas do Granada, mas a plataforma não seria mais a do Maverick com motor 2,3 litros, mas sim a do Corcel com o novo motor de 1,6 litro.

Nascia assim o Del Rey, requintado, luxuoso, mas anêmico e econômico. Uma resposta da Ford para a promessa de um futuro sombrio e escasso de energia. Ela antecipava o que acreditava que seria a tendência para o mundo dali para frente. Até o nome escolhido era pomposo, Del Rey, em espanhol e em português arcaico significa "do Rei". Legal, mas acredito que um rei gostaria de andar um pouquinho mais rápido. Porém a Ford apostava em tempos bicudos e por isso o consumo precisava ser contido. Até para o rei.


Interior requintado e painel completo: marca do Del Rey

O carro foi lançado em duas versões, Del Rey e Del Rey Ouro. Porém, um carro deste nível de requinte, "do Rei", não podia ter uma versão "básica": O mercado logo tratou de apelidar o Del Rey básico de "Del Rey Prata". Era disponível em duas e quatro portas, sendo o desenho da versão 4-portas bem mais equilibrado que o da de duas.

A dianteira era quase idêntica à do irmão mais pobre Corcel, para diferenciá-los a Ford usou no Del Rey uma grade de elementos prateados verticais, à semelhança da do Landau, em oposição à grade de plástico preto e elementos horizontais trazida pelo Corcel. As lanternas dianteiras também tinham um formato levemente diferente, tanto para diferenciar quanto para desencorajar quem quisesse transformar a frente de seu Corcel em frente de Del Rey.

Em 1983 surgiu o câmbio automático, de três marchas. Foi o primeiro carro nacional a utilizar comando eletrônico nesse tipo de câmbio, o transeixo era um Renault MJ3, comandado por um módulo RENIX. Estranhou o câmbio Renault? Não, este blog não errou, lembre-se da origem do carro, o Corcel era a versão brasileira do Renault 12. No mesmo ano aparecia a perua Scala, na verdade uma Belina com acabamento de Del Rey.

No fim de 1983, o motor foi reformulado, ganhando potência e tendo seu consumo diminuído, com o advento das melhorias do CHT.


Del Rey Scala, a versão perua: uma Belina luxuosa
No modelo 1985 veio uma reestilização, a primeira e única do carro. A frente ganhava faróis trapezoidais e uma grade de elementos horizontais "aerodinâmica". As lanternas tinham seu desenho levemente modificado também, ficando discretamente caneladas. As versões passavam a ser três, GL (eqüivalente à antiga "Prata"), GLX (uma nova versão intermediária) e Ghia (equivalente à "Ouro")

A linha Corcel/Del Rey de 1986 ganhava a opção de direção assistida hidráulica e de espelhos de acionamento elétrico. O Corcel sairia de linha neste mesmo ano. Com a saída de cena do Corcel, a Scala assumiria de vez o nome de Belina. Para ficar no lugar do Corcel, uma nova versão despojada foi criada: O Del Rey L. Assim, ficavam quatro versões: L, GL, GLX e Ghia, divisão que acompanharia o carro por todo o resto de seus dias.

Felizmente, a profecia do petróleo a US$ 90 no meio da década não se cumpriu. Aconteceu o contrário: graças à abertura de novos poços ao redor do mundo e à normalização de sua produção nos países árabes, seus preços foram caindo. Em 1986, o preço do óleo desceria a US$ 10 o barril (US$ 21 atuais).

Mas o mercado havia mudado bastante em 1986. As linhas Dart e Galaxie não existiam mais, haviam sucumbido à crise do petróleo. O Alfa Romeo estava prestes a sair de linha. Porém, a linha Opala sobrevivera à crise e sua versão mais luxuosa, a Diplomata, assumia a posição de grande carro de luxo executivo, espaço que deveria ser ocupado pelo Del Rey caso se confirmasse o cenário de petróleo caro previsto pela Ford, matando carros gastões como o Opala. Só que este cenário não ocorreu e a linha Opala continuava firme e forte.


Frente nova a partir de 1985

Neste intervalo de tempo, apareceram outros dois concorrentes de peso: o Monza em 1982 e o Santana em 1984. Estes, em 1986, dispunham de modernos motores OHC de 1,8 litro, bem mais potentes que o CHT da Ford. O Monza nascera com um motor de 1,6 litro, ainda sob a sombria perspectiva do petróleo caro, porém, logo no ano seguinte, a GM já apostava na transitoriedade dos altos preços da gasolina e lançava a versão de 1,8 litro de seu moderno motor OHC. O Santana já nascia com o novo motor 1,8 da VW, para fazer frente ao Monza de 1,8 litro.

No fim deste mesmo ano, o Monza, carro mais vendido do mercado então, ainda ganharia um motor de 2,0 litros, trazendo uma potência de 110 cv, contra os parcos 73 cv do CHT. Para piorar, o CHT era um antigo motor OHV cujas origens remontavam ao motor Sierra da Renault, nascido em 1962 com uma cilindrada de apenas 956 cm³ e que já havia sido esticado até o máximo possível para virar 1,6 litro. Não dava para fazê-lo crescer a 1,8 ou 2,0 para acompanhar os concorrentes, o CHT iria morrer 1,6 litro.

Como desgraça pouca é bobagem, seus novos concorrentes, além de mais modernos e mais potentes, ainda eram mais espaçosos, repetindo a praga que vitimara o Maverick no Brasil. O Del Rey tinha entreeixos de 2,44 m, contra 2,55 m do Santana e 2,57 m do Monza.

O Del Rey era um carro bastante equipado, mas tudo isso pesava ainda mais sobre o velho e já sobrecarregado motor CHT. Eu mesmo tive um Del Rey Ouro 4-portas com a caixa automática eletrônica, ano 1984, que comprei em 1993. Era um carro que sofria até para acompanhar os primeiros 1-litro que na época surgiam no nosso mercado. Tive bons momentos dentro deste Del Rey, ele me acompanhou em algumas de minhas aventuras de juventude, mas se existe algo que não me deixou saudades nele foi desempenho.

Um grande culpado de sua lerdeza era o peso do carro. Apesar de não ser capaz de lhe dar um desempenho brilhante, o CHT até que não fazia feio no Corcel. O problema é que o Corcel pesava na casa de 950 kg, enquanto o Del Rey, com quatro portas, com todos os itens de conforto e com as forrações termoacústicas adicionais podia passar dos 1.100 kg. E o CHT ainda tinha que mover o compressor do ar-condicionado e a bomba da direção hidráulica, coisas que não existiam no Corcel. A força, que já não sobrava no Corcel, passou a faltar no Del Rey.

Neste mesmo ano de 1986, foi criada a Autolatina, uma junção da VW e da Ford brasileiras. Porém, o Del Rey continuaria com seu fraco motor CHT por mais três anos. Enquanto isso, em 1988, o Santana receberia também seu motor 2000. Ficavam Monza e Santana 2,0 contra Del Rey 1,6. Covardia...


Del Rey Belina 1,8

Em 1989, o Del Rey finalmente recebeu motor e câmbio da VW, o AP 1800. A carcaça do câmbio precisou ser modificada para ter o motor instalado na vertical (inclinado no Santana). Seu desempenho melhorava bastante, mas sua imagem de carro excessivamente quadrado (estava muito datado pelas linhas típicas dos anos 70) e lerdo (dispensa maiores explicações) já estava fortemente ligada a motoristas mais idosos: Del Rey era carro "de velho".

Junto com o novo motor, vinha a terceira luz de freio, que se tornara obrigatória nos EUA a partir de 1986 e começava a virar moda no Brasil, conhecida mais por "brake light", nome dado pelo fabricante do acessório, a Arteb (nome sem sentido, significa luz de freio em inglês, o que todo carro tem). O objetivo era diminuir a probabilidade de uma colisão traseira, aumentando a visibilidade de quem vem atrás. O Del Rey foi o primeiro carro nacional a usá-la.

No ano seguinte viria mais um golpe, desta vez mortal: O mercado brasileiro foi aberto para que importados pudessem concorrer com as "carroças" nacionais. Com a concorrência dos importados, os fabricantes nacionais foram obrigados a modernizar todas as suas linhas de veículos. O Del Rey era velho de estilo e mais velho ainda de plataforma. Por isto, foi um dos primeiros a cair. Em meados de 1991, sua produção era encerrada, junto com a da Belina.

O carro criado para um futuro sombrio que não aconteceu finalmente saía de cena. O petróleo ainda continuaria barato por pelo menos mais 10 anos.

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