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terça-feira, 9 de dezembro de 2014

ARDUN-FORD, CHRYSLER E EMI-SUL



Há uma série de confusões históricas comuns quando se fala do Chrysler Hemi, principalmente aqui no Brasil. A primeira diz respeito a Zora Arkus-Duntov e sua conversão do Ford flathead V8 em um Hemi, que levava o nome de sua empresa Ardun. Segundo a lenda corrente, o Chyrsler seria uma cópia do Ardun. Depois, quase como uma consequência disso, há confusão sobre a relação entre este cabeçote de Zora e o nosso Simca Emi-Sul, que segundo a mesma lenda é também derivado dele.

A intenção deste post é tão somente esclarecer estas histórias todas, pelo menos até o ponto em que se sabe hoje. Infelizmente, aqui no Brasil se dá muito pouca importância aos fatos e a análise histórica, principalmente quando se fala de carros, um campo nebuloso e cheio de “especialistas”. Já vi muita coisa estranha publicada inclusive em livros por aqui.

Para começar, se faz necessário resumir aqui a história do cabeçote Ardun, e de quebra matar uma confusão que aparece regularmente não só aqui no Brasil, mas mundo afora. Esta confusão diz respeito à nacionalidade de Zora Arkus-Duntov.

Gato que nasce no forno, é pão?

Zora Arkus-Duntov (abaixo), e que alcançaria fama como o primeiro engenheiro-chefe do Corvette, nasceu Zachary Yakovlevich Arkus, filho de Yakov Arkus e sua esposa Rachel, em 1909. Nasceu em Bruxelas, na Bélgica, onde seus pais, ambos russos de prósperas famílias da cidade de São Petersburgo, então moravam temporariamente. Yakov e Rachel se conheceram em Bruxelas, onde estudavam em duas universidades diferentes, e sem dúvida se aproximaram pela origem e situação semelhante. Eram também ambos judeus, como o nome do meio de Zora (“filho de Jacó”) simbolizava.



Seria o bebê Zora belga então? É claro que não. Zora nunca teve nacionalidade belga. Saiu de lá com 1 ano de idade, quando seus pais voltaram a São Petersburgo, onde ele foi criado e viveu até os 17 anos de idade. Zora sempre declarou ser russo, foi sempre o russo sua primeira língua, e seu registro de nascimento o declara desta forma. Gato que nasce no forno é gato, e não pão.

Muito dessa confusão se deve a GM, que quando falava de Zora o colocava como belga de origem russa, visto que russos não eram lá o povo mais popular dos Estados Unidos durante os anos 50 e 60. Zora só foi conhecer a Bélgica numa viagem a passeio, muito tempo depois.

Mas como Zachary Yakovlevich Arkus se tornou Zora Arkus-Duntov? Essa história é realmente interessante, e merece que passemos por ela para explicar a origem do nome Ardun.

O que aconteceu foi, primeiro, uma revolução. A Revolução Bolchevique de 1917 mudou definitivamente a vida de Zora. Sua mãe era ativa revolucionária comunista, e com isso pelo menos não perdera sua casa, sendo ela apontada para cargos no partido. Mas ainda assim foram tempos difíceis para Zora e seu irmão mais novo Yura. Sua mãe, preocupada em mudar a Rússia e o mundo segundo a nova ordem socialista, se distanciou de seus filhos, e Yakov, o pai, já era desde sempre uma pessoa distante. Além disso, a comida era pouca, e precisava ser protegida a todo custo; Zora aos 9 anos de idade já portava um revólver Smith &Wesson para onde quer que fosse.



Então uma coisa muito estranha aconteceu. Aparece em cena Josef Duntov, um engenheiro elétrico do governo comunista, que se muda para a casa dos Arkus, e efetivamente toma o lugar de Yakov na alcova de Rachel. O pai de Zora permaneceu morando ali, e Rachel continuava a cuidar dele como uma mãe, mas eventualmente se divorciou para se casar com Josef. Como Yakov Arkus e Josef Duntov continuavam morando ali, então efetivamente Zora passava a ter dois pais sob o mesmo teto!

Em 1926, Josef é transferido para trabalhar na embaixada russa em Berlim, e Zora viaja para a Alemanha com eles, onde se matricula na prestigiosa universidade de Charlottenburg. Se forma engenheiro em 1934. Logo, Hitler, o nazismo, a perseguição aos judeus e uma épica fuga para os EUA. Zora chega a Nova York em 1940, com sua família. Inicialmente trabalha em uma série de pequenos contratos como engenheiro, para ajudar no sustento.
No fim de 1941, o Japão ataca Pearl Harbor e os EUA finalmente entram na Segunda Guerra Mundial. Sentindo uma grande oportunidade aparecer, Zora junta o dinheiro de seu padrasto Josef, seu e de alguns outros amigos russos expatriados e abre junto com o irmão Yura uma empresa para fabricar peças de precisão usinadas. Coloca o nome na empresa de Ardun Mechanical Corporation, Ardun sendo a junção dos nomes ARkus e DUNtov. Ao mesmo tempo, nosso herói abandona o Zachary em favor de seu apelido de infância, e, tornando oficial a sua estranha condição de pai duplo, adota o nome de Zora Arkus-Duntov.



Durante a guerra, com uma demanda gigantesca de peças de engenharia de tolerância apertada (a especialidade da Ardun), a empresa se torna um estrondoso sucesso. Os Arkus-Duntov podiam finalmente aproveitar a vida sem se preocupar com dinheiro ou perseguições, em um mundo novo.

Mas em 1945, com o fim da guerra, a festa dos contratos militares acaba, e Zora precisa pensar em algo para usar a capacidade produtiva de sua empresa, então com mais de 300 funcionários. E é claro que, tratando-se de Zora, esse algo só podia ter algo a ver com automóveis velozes…

O cabeçote ARDUN



A ideia de Zora era simples: um cabeçote especial para o popularíssimo Ford V8 flathead. E não um cabeçote qualquer, mas um com válvulas opostas e câmara de combustão hemisférica. Ao final de 1947, ao mesmo tempo em que a Chrysler experimentava com o seis em linha DOHC, Zora lançava no mercado o “Ardun OHV conversion kit”, que por meio de balancins e varetas acionados pelo comando central original do Ford, acionava válvulas opostas em uma câmara de combustão hemisférica, tal qual o futuro Hemi de 1951.



Os cabeçotes eram em alumínio, algo positivamente exótico para aquele tempo. Teoricamente, além da maior eficiência pelo desenho da câmara, o cabeçote Ardun permitia também taxa de compressão mais alta. A beleza do kit estava também na simplicidade: nenhuma modificação no bloco era necessária, e até o comando original da Ford era usado.Testes em dinamômetro apontavam uma potência de 160 cv, ante 100 do motor original, um aumento realmente considerável, e Zora estava animadíssimo com as possibilidades.

Mas o Ardun se mostrou um completo fracasso. Primeiro, havia uma série de problemas técnicos comuns em conversões não desenvolvidas com o método e procedimento adequado. As varetas de aço fundido eram pesadíssimas, as sedes de válvulas se soltavam com facilidade, as válvulas eram também muito pesadas. Juntas de cabeçote falhavam frequentemente. A ignição original Ford não funcionava bem com o novo motor, bem como o sistema de refrigeração original.


Depois havia também o fato de que, apesar do kit ser relativamente barato, era uma desgraça para ser instalado, levando coisa de dez horas com um mecânico experiente. E depois era necessário fazer a camicleta toda funcionar redondinho, um trabalho que só de imaginar já me cansa… Fora o incrível fato de que os cabeçotes não cabiam em Fords novos, sendo relegados então a hot rods sem capô e picapes. Não podia dar certo mesmo…
Algo em torno de apenas 200 kits foram fabricados, e a Ardun acaba por fechar as portas em 1949. Zora, durante 1949, tentara ainda outra maneira de salvar a ideia. Cria um motor de corrida baseado no V-8/60 (60 hp,uma versão menor do V-8 flathead tradicional) da Ford, para uso nas competições de midgets, comuns pelos EUA. A ideia era um substituto mais barato para os Offenhauser de quatro cilindros em linha DOHC que então dominavam a categoria. Também não deu certo, e apenas algo em torno de 20 a 30 kits (abaixo) para o V-8/60 foram produzidos, tornando esses componentes um Santo Graal de colecionadores hoje.



Zora então se muda para a Inglaterra, para trabalhar com Sidney Allard, um concessionário Ford inglês que fabricava alguns leves e violentos carros esporte com motores V-8 americanos. Havia séria dificuldade de se importar motores para a Inglaterra naquela época, e então Allard mandava seus carros para os EUA sem motor, onde invariavelmente recebiam um Cadillac V-8 OHV de alta compressão. Já para a venda na Inglaterra, se encontrava preso ao V-8 Ford de cabeçote plano, um propulsor totalmente mal ajustado para o antecessor do Cobra que era efetivamente o Allard J2.



Zora então convence Sidney a produzir os Ardun na Inglaterra. Durante 1950 e 1951, o Ardun-Allard foi produzido, com algum conteúdo importado dos EUA. Mas sem dúvida pelos mesmos motivos que mataram o Ardun novaiorquino, logo morria também o inglês.



Zora, vendo que não havia futuro para si com seu amigo Sidney, volta para os EUA a tempo de ver, numa exposição Motorama da GM em Nova York, um pequeno carro esporte de compósito de fibra de vidro chamado Corvette. Nosso herói, empolgado, escreve uma carta para a Chevrolet oferecendo seus serviços, é contratado por Ed Cole, e o resto é história conhecida: Zora faz do Corvette C1 um carro esporte de verdade, se torna o pai do C2 e do C3, e alcança fama quando um cargo hoje famoso na indústria é criado só para ele: Engenheiro-chefe do Corvette.

Ardun vs Chrysler



Passada a necessária introdução, chegamos à primeira questão que me propus a esclarecer: É o Chrysler Hemi uma cópia deslavada do Ardun de Zora?

Muita gente conclui que, vindo antes do Hemi, e tendo uma configuração do trem de válvulas muito parecida em conceito, o Chrysler é mesmo copiado do Ardun. Mas analisando o que se sabe de concreto, o que parece óbvio não se revela tão claro.




Primeiro, o Ardun pode ter o mesmo conceito, mas em detalhe é bem diferente. Uma rápida olhada em alguns esquemas e fotos revela um sem-fim de detalhes e características básicas díspares (acima, o Chrysler, e abaixo, o Ardun). Uma fácil de mencionar é a que o Ardun é em alumínio, e o Hemi em ferro fundido. A Chrysler também não cometeu os mesmos erros de Zora com o trem de válvulas, fazendo varetas e balancins mais robustos e, principalmente, leves. Os desenhos de câmara de combustão e dutos também diferem.


Mas na verdade, o principal motivo para dispensar esta teoria é o fato de que, muito provavelmente, ninguém na Chrysler jamais viu um Ardun-Ford ao vivo. Temos que lembrar que a empresa de Zora falhou miseravelmente com sua conversão, e que os kits eram raríssimos, mais raros do que hoje são (mais sobre isso mais adiante). Com certeza a empresa sabia da existência do Ardun, mas provavelmente considerou-o uma irrelevância amadora.

Willem Weertman, que participou do desenvolvimento do Hemi, nem sequer menciona o Ardun em seu famoso livro sobre os motores Chrysler de 1922 a 1998. Não o menciona também Anthony Young no seu livro “Hemi: History of the Chrysler Hemi V-8 Engine”. E esta omissão não aconteceu para que pensássemos que a Chrysler fosse a primeira em algo: ambos contam em detalhes a intensa pesquisa que a empresa fazia desde o fim da guerra, pesquisa essa baseada em testes e avaliações de vários motores de várias procedências. A ideia era saber tudo que já fora feito, para servir de base ao desenvolvimento. Se foi mencionado a compra e avaliação de motores Alfa Romeo, Riley, Fiat, Healey, Rolls-Royce, Cadillac e outros, por que nenhuma menção do Ardun? Simples: Porque ele realmente ficou de fora.

E de qualquer forma, nenhuma peça ou desenho específico do Ardun pode ser transposto para o Chrysler, o que significa que a Chrysler fez o seu motor. Falar que o Hemi é cópia do Ardun é o mesmo que dizer que todo motor moderno DOHC é cópia dos Alfa Romeo dos anos 50. Apenas o conceito básico é o mesmo, gente…


Ardun V-S Emi-Sul



A versão menor do V8 Ford flathead, o V8/60, mencionado agora há pouco, nunca foi um sucesso nos EUA, devido a seu baixo deslocamento e potência. Foi deportado para a filial francesa da empresa, que depois foi vendida para a Simca de Pigozzi. Em 1959, vem ao Brasil com a empresa francesa, visto que não fora um sucesso também na Europa, paradoxalmente neste caso porque era grande e beberrão demais…


Em 1966, o Simca brasileiro recebe um novo motor, também com câmara de combustão hemisférica e válvulas opostas acionadas por varetas e balancins, como o Ardun e o Chrysler. Chamado de Emi-Sul (acima), o motor é obviamente a menina dos olhos do Eng Jack-Jean Pasteur (abaixo), o francês que a todo custo tentava manter a fábrica brasileira operando, em meio a grandes dificuldades.


Hoje, vejo muita gente, internet afora, e mesmo em livros e revistas, dizer que o Emi-Sul é uma adaptação brasileira do kit Ardun para V-8/60 Ford (abaixo, com seu irmão maior). Isto é, de novo, uma grande bobagem.



Primeiro, é bastante improvável que um kit, ou mesmo um desenho, estivesse disponível para estudo da Simca brasileira. Um kit Ardun para V-8/60 é tão raro que a probabilidade é a mesma de ganhar na Mega Sena e ser atingido por um raio ao mesmo tempo. Além disso, o kit era, ao contrário do seu irmão maior, algo desenvolvido para competições, alta rotação, e não se prestaria aos Simcas de rua.



Mesmo que a Simca tivesse em mãos o kit Ardun para V-8/60, o Kit Ardun normal, e um Chrysler Hemi, ainda assim, não poderia usar nada diretamente no seu motor. Mais fácil era ir lá e desenhar ele ela mesmo. Certamente foi o que fez. Basta comparar algumas fotos (acima, Ardun V-8/60, abaixo, Emi-Sul) para entender que são animais bem diferentes…


Não é absurdo pensar que alguma ajuda tenha vindo da Chrysler, visto que a ela compraria a Simca brasileira naquele 1966 (ano em que colocava na rua o Hemi 426). Mas também é improvável. A verdade é que o motor Emi-Sul é único, projetado sob a batuta do Eng. Pasteur. E basta ver a cara de orgulho dele na foto abaixo para entender isso.



O Ardun renasce



Algum tempo depois da Ardun fechar as portas, ao redor de 1951/52 começa um renascimento. Dois hot rodders californianos, Don Clark e Clem Tebow (C&T Automotive), resolvem se dedicar a desenvolver o malfadado kit de Zora. Usam válvulas do mercado ao invés das de Zora, ajustam as molas, trocam as pesadas varetas fundidas por leves e resistentes tubulares (hoje de uso universal). Criam novos coletores de admissão e escapamento, novo sistema de ignição, e comandos de válvulas especiais. O motor resultante não era barato, mas transformava o velho V-8 Ford em um dragão cuspidor de fogo e vapor de gasolina, um monstro a se temer.



Nascia então uma lenda, suportada por uma série de dragsters de arrancada e de recordes de velocidade em Boneville Salt Flats. Um carro chamado “City of Burbank” (abaixo), propelido por um desses Arduns do inferno, é cronometrado a 370 km/h em setembro de 1952!



Mas como poucos kits estavam disponíveis, e com o aparecimento dos modernos Chrysler Hemi (e depois, em 1955, o Chevrolet small-block V8), logo os Ardun viram lendas, sempre comentados, mas raramente vistos.

Em 1990, um milionário californiano chamado Don Orosco financia a criação de um lote de mais 30 Arduns. Vint e sete deles são vendidos. Em seguida, outro velho hot rodder chamado Don Ferguson compra o ferramental criado por Orosco, e cria a Ardun Enterprises. O resultado é que hoje você pode comprar um Ardun novinho. Mas apesar da aparência idêntica ao original, o novo Ardun é um componente muito diferente e mais desenvolvido. Na foto abaixo pode se ver um original embaixo do novo.

Por conta disso, hoje os Arduns são figurinha fácil nos EUA. Muito mais do que no tempo em que se tornaram lendários…



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