Lada Laika
O Lada Laika tem uma delícia de câmbio. Isso mesmo, o feioso e meio desengoçado Laika é muito gostoso de cambiar. A troca marchas nele parece com a dos pequenos esportivos ingleses da década de 1960, Triumph e MG; têm o mesmo jeito, apesar de ser um projeto italiano, Fiat. Tem cinco marchas. Seus engates são curtos e precisos, e a alavanca tem base pivotante até que alta em relação ao banco do motorista.
E já que a arquitetura do carro é dos mais tradicionais – motor dianteiro, em posição longitudinal, e tração traseira – a alavanca incide direto sobre a caixa de câmbio, que está no túnel central, bem onde encostamos a perna direita, então essa proximidade e essa ausência de cabos e/ou varetas a se interpor entre a alavanca e a caixa faz com que recebamos na mão muitas informações diretas e sem interferências de como as coisas estão se passando.
Corvette Sting Ray
Mas o câmbio mais gostoso de cambiar, ao menos para mim, é o dos Corvette Sting Ray e Stingray (de 1963 a 1967 escrevia-se Sting Ray, e a partir de 1968, com a mudança de linha, juntaram o nome em um só, Stingray). Caixa BorgWarner T-10, 4 marchas, alavanca com um pescoço que deve ser levantado para liberar o canal de ré. Para levantá-lo facilmente há nesse pescoço duas lingüetas tipo "T", niqueladas, nas quais os dedos indicador e médio se encaixam. Fechando o espaço entre a alavanca e o console há uma lâmina grossa de borracha. Esses Corvette têm a mesma configuração do Laika: motor dianteiro longitudinal e tração traseira, com caixa de câmbio acoplada diretamente no motor (só posteriormente é que os Corvette passaram a ter transeixo traseiro, para jogar mais peso para trás e otimizar a distribuição de peso).
Não que os Sting Ray e Stingray a tivessem ruim, tinham já 50-50%, mas o conjunto do novo projeto exigiu mudanças. Além do mais, quando passaram a caixa lá para trás, ganhou-se espaço para as pernas com a diminuição do túnel central. Sua base pivotante é alta em relação ao motorista, já que o assento vai rente ao assoalho e a caixa de câmbio é grande, uma abraçada para podermos envolvê-la, e bruta, bem bruta para agüentar o brutal torque dos V-8 da GM. Seus engates são macios, sedosos, e emitem o click só deles, uma mistura de sons e sensação táctil de ferro batendo em ferro protegido por uma camada fina de borracha, click, e na nossa mão sentimos que engatou e está engatado sem erro. A alavanca é curta, bem curta, o que torna pequena a distância da posição de uma marcha à outra, mesmo ela tendo angulado bastante, inclinado bastante. Explicando com melhor visualização: caso a alavanca fosse longa, ou melhor, normal, com mais de um palmo, as distâncias entre as posições das marchas seriam grandes, estilo caminhão. A alavanca é curta, não mais que dez ou quinze centímetros, e mesmo assim, com pouca alavanca, conseguiram deixá-la até que leve; não estilo Gol novo, cujo manejo é leve e preciso, e reputo talvez o melhor no mercado nacional, perfeito, mas leve se a pegarmos com toda a mão e a movimentarmos não só com o punho, mas também com o braço..
Mas o câmbio desses Corvettes casam melhor com mãos de quem, além de uma alavanca de Gol novo, também manejam naturalmente um martelo ou um 38 da Taurus. A manopla não é estilizada, não tem frescura; é só uma bola. Uma bola metálica, uma bola de ferro e niquelada, para ser pegada com a mão toda, usando-se todos os dedos, e não manejada só com as pontas de alguns deles. Sendo lisa e niquelada, se a mão suar essa bola lhe escorrega um pouco, daí que é feita para ser pegada por inteiro, com toda a mão. Se o sujeito não for correr e se não estiver muito quente, sua mão não sua e a manopla não lhe escorrega. Mas mesmo que para esse sujeito o ato de mandar a lenha num Corvette bruto seja uma coisa absolutamente tranqüila, se ele for correr pra valer com o bicho, ele vai suar no geral, vai suar o suor quente, o suor bom, o do prazer. Nesse caso ele certamente deverá desligar o ar-condicionado. O motorista deve desligar o ar-condicionado porque naqueles tempos em que esses carros foram feitos esse opcional, além de raro nos esportivos, era ainda relativamente tosco e seu funcionamento pesava muito, demandava muita potência. Mesmo em um veiotão daqueles se nota uma pequena diferença entre "ar" ligado e desligado. Então, se o racha for mesmo planejado, o sujeito vai saber que vai suar gostoso e que deve meter umas luvas, de preferência de couro fino, napa, toda furadinha, para que suas mãos grudem bem no volante e manopla, e, sendo napa fina, elas pouco esquentam as mãos. Caso não tenha luva alguma, volta e meia ele secará suas mãos nas calças e boa, sem problemas. De suas mãos, nesse momento, nada escapará, mesmo porque em cada movimento ele não estará empregando força maior que a estritamente necessária, mesmo porque todos os movimentos e sensações tácteis lhe são perfeitamente conhecidos e a força a ser empregada também, nem força a mais, nem força a menos, click, click, click,... nada lhe é surpresa.
Rodando tranquilo fará trocas lentas e em giro baixo, suaves, quase imperceptíveis, volta e meia pulará marcha, motor elástico. No racha, trocas rápidas; mas nada tão rápidas quando comparadas às contadas em milissegundos dos robotizados modernos. Há também um espaço maior entre os giros de uma marcha à outra; afinal, são só quatro longas e suficientes marchas, a primeira que atravessa o quarteirão, a segunda que atravessa a cidade, a terceira que risca a paisagem próxima e a quarta que afunila a estrada tornando-a uma tênue linha reta lá no horizonte.
Corvette Stingray
Outros carros, além desses Corvette e do Laika, têm câmbios bem gostosos de cambiar. Já outros têm o trambulador difícil, tinhoso, como alguns Porsche 911 antigos, principalmente os de primeira "perna de cachorro" (fora do "H"), usados até 1972. Caso haja interesse, sigo contando, para registro, sobre essa fonte de prazer que parece tender a sumir: o câmbio manual, uma alavanca à nossa mão que se insere diretamente nas entranhas da máquina, direto às suas engrenagens e, como tal, deve ser manejado com o devido cuidado e conhecimento. Uma pena, pois ele torna a guiada uma relação mais envolvente, íntima e – por que não? – carinhosa com a máquina que nos move.
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